Ensaio sobre a cegueira hídrica: Quantos dias nós aguentamos sem poder dar descarga?

Madrugada. O corredor da avenida Radial Leste estará tomado por centenas de caminhões-pipa. O fluxo normal de veículos será interrompido para o úmido cortejo. Ali passará a água que abastecerá a zona leste paulistana, casa de quatro milhões de pessoas que, neste mês de março de 2015, ficarão sem uma gota de água nas torneiras.

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O racionamento estará implantado com toda a ferocidade que o momento exige. Serão cinco dias sem água, para um com água. Pior para você que não tem caixa d’água, ou, se tem, ela é pequena demais para o número de moradores da casa.

“Os caminhões encherão os reservatórios da Sabesp nas primeiras horas da manhã. Das 10h às 12h, a população de Ferraz de Vasconcelos, com seu comprovante de residência em mãos, poderá retirar uma quantidade de água por pessoa. Das 12h a tal hora, vai ser a população da zona leste…”

Elaborar cenários prospectivos é uma ferramenta de gestão eficaz para quem queira influenciar na construção do futuro e reduzir os riscos de um futuro incerto ou ameaçador. Foi isso o que fezMarussia Whately, uma das mais importantes ambientalistas brasileiras, a pedido de jornalistas que compõem o projeto Conta D’Água, de cobertura da crise hídrica.

Longe de ser um exercício de profecia, adivinhação ou de pura especulação, Marussia baseou-se na experiência de décadas de estudo dos mananciais hídricos do Estado de São Paulo, e na análise das reações sociais advindas de um racionamento severo, como o que foi feito em Itu, durante a crise de abastecimento de água, em setembro do ano passado.

Eis as principais imagens desse cenário trazido pela especialista e publicado no sitehttps://medium.com/a-conta-da-agua/ensaio-sobre-a-cegueira-hidrica-2759ec839c74 .

1. O abastecimento do precioso líquido será feito de modo a atender apenas às necessidades mais elementares, como a preparação de alimentos, tomar uma breve ducha e escovar os dentes. Para descarregar a privada, fazer a limpeza da casa e dar banho no cachorro, o jeito será contar com a água das chuvas.

2. Restaurantes serão obrigados a baixar as portas. Não haverá água para lavar tanta louça. Outros estabelecimentos podem vir a ser obrigados a restringir o uso de seus banheiros.

3. Empresas que dependem do uso intensivo de água começarão a se preparar para sair de São Paulo, já que não há previsão para o término da crise. Vão em busca de melhores condições hídricas.

4. Depois do colapso do Sistema Alto Tietê, que abastece a zona leste de São Paulo, a água potável passou a ser um bem raro e caro. Bandidos já fazem sequestros-relâmpagos de caminhões-pipa cheios, a fim de vender a carga em condomínios fechados. Uma carga de 15 mil litros de água pode facilmente ser repassada por R$ 2.500.

5. O tráfico de água campeia. Em Itu, durante o apogeu da falta d’água, em setembro de 2014, quadrilhas comercializavam a água que deveria ser distribuída gratuitamente à população. É previsível que o mesmo ocorra por aqui.

6. Todos os 50 mil poços em funcionamento na cidade de São Paulo serão “confiscados”, mesmo os localizados em terrenos privados. Só o Estado estará autorizado a explorá-los.

7. Moradores de casas humildes terão de ir trabalhar sem tomar banho e com a mesma roupa do dia anterior. Quando eles chegaram em casa, não havia água; quando saíram, a água ainda não havia voltado. E a caixa d´água nem chegou a encher por causa da redução da pressão.

8. Haverá creches que interromperão os serviços por falta de água, gerando um efeito cascata. Se as crianças não puderem ir para a creche, a mãe terá de faltar no emprego.

9. Começarão os pedidos de socorro por parte de idosos, acamados, e de gente com deficiência de mobilidade, que não conseguirão colocar uma lata enorme de água na cabeça e levá-la para casa.

10. Surgirão aqui e ali focos de desidratação, atingindo principalmente indivíduos de terceira idade e crianças até 4 anos, mais vulneráveis.

11. Já se esperam protestos. Em Itu, vizinho de São Paulo, até donas de casa colocaram fogo nas ruas. “Aqui em São Paulo, vai haver um escalonamento de manifestações e de violência porque a água mexe com a questão da dignidade. Quantos dias nós aguentamos sem poder dar descarga?”, pergunta Marussia. A tropa de choque da PM dará show de truculência, como sempre.

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